Enterrados no Jardim

By: Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
  • Summary

  • Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
    © 2024 Enterrados no Jardim
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Episodes
  • Uma escatologia política: do mal à emancipação. Conversa com Tiago Mota Saraiva
    May 2 2025

    A um político nos nossos dias aquilo que deveríamos exigir antes de quaslquer outra coisa é que tenha a disposição de acumular "um cadastro de prodígios", que o seu discurso se liberte do horizonte do provável, procurando formular uma profecia obscena e que passe pelo triunfo de uma voz maldita, de tal modo que aqueles que o oiçam se sintam já de certo modo culpados, capazes de vislumbrar essa realidade alternativa com uma precisão quase alucinante. Talvez não se possa resgatar a política sem uma boa dose de delírio, algo que não nos sujeite apenas à revelação do imediato. A voz deveria ser um modo de nos fazer ver o que está em falta, sobretudo tendo em conta que o quadro mediático tende a tornar irreal o próprio mundo. Como assinalava Steiner, "a televisão pode mostrar todos os massacres, todas as torturas e todos os acontecimentos de uma tal maneira que o imediato se torna para nós remoto, estranho e monstruoso, como se fôssemos crianças assustadas com o cair da noite". Talvez só restem como capazes de afectar a mudança aqueles discursos que possam aliciar-nos a mergulhar nesse território nocturno, reclamar de novo a heresia de viver a presença da queda. Aquele crítico recorda o exemplo de Claudel, acusado pelos seus detractores de uma heresia muito perigosa e grave: "acreditar não no céu, mas no inferno, acreditar no Mal, mas não no Bem". E Steiner tributava à sua época o conhecimento e o fascínio que sentia pelo mal. A verdade é que se pressente a impotência da política ou a sua profunda desonestidade por se limitar a falar em nome de uma inocência ou ingenuidade, e essa é a razão por que estamos desertos por ouvir vozes de outra ordem, que arrisquem suspender esse tom pastoso e cheio de boas intenções. "O papel que o artista desempenha na sociedade é o seguinte: redespertar os instintos anárquicos, primitivos, crucificados à ilusão de uma vida confortável", escreve Henry Miller. Fugindo ao ruído, a esse que domina o mercado como objecto de sonsumo indispensável, a arte surge como a possibilidade de uma paragem, uma intriga que encoraja em nós os actos que levem à destruição das condições úteis e necessárias ao dispositivo social. Há quem se satisfaça e regozije toda a vida com o mundo como ele se organizou, com o tempo como este ritmo que se infiltra nos corpos e soa tão alto que não deixa que quase ninguém escute os próprios pensamentos. Então, o que pedimos a uma suspensão abrupta? Que seja generosa, que cancele o ruído pelo tempo suficiente para que alguns possam voltar a reconhecer a voz que lhes é própria. Se alguns têm insistido que é preciso "organizar o pessimismo", "preparar-nos para sobreviver à cultura", há quem reconheça também como a cultura é precisamente aquilo que nos desmotiva, a tal coisa que vai emebebndo o espírito, tornando-o pesado e impotente, sendo que, diante de uma ameaça terrífica, devemos apelar àquela vitalidade primitiva que age por impulso, com raiva, com uma ânsia absurda de esgotar em si todas as forças que lhe chegam como uma inspiração malévola. "De tanto viver nas trevas, acabámos por assinar um pacto com os monstros e as larvas que aí encontram abrigo. Esse pacto, temos agora de o romper e de nos atrever a olhar o dia, a fitar o nosso sol da Barbárie de frente" (Mohammed Dib). Deverá chegar um momento em que estejamos à altura de viver sem que tudo esteja já previsto de antemão, sem assumirmos que a melhor forma de se viver é com a captura total do dia de amanhã, sem margem para alguma dose de incerteza. Ao contrário do que se vem dizendo, talvez a nossa salvação tenha estado mais na hostilidade, e o bem seja uma província cercada pelo mal. Uma espécie de trégua entre adversários que aprenderam a temer-se. Neste episódio, vamos andar de volta das questões da habitação, e dos constrangimentos que o mercado tem imposto às cidades, ao ponto de, como um todo, as comunidades se terem visto expropriadas do espaço público, sendo-lhes retirada a capacidade de definir de verdadeiras políticas de urbanismo. Quem nos veio dar algumas noções, algumas colheres de sopa numa ira que, às vezes, se fica pela saliva, foi o arquitecto e urbanista Tiago Mota Saraiva, um tipo que tem sabido aliar a sua acção profissional e enquanto professor a uma componente de intervenção e militância no sentido de combater a desigualdade e os vícios de um país que cada vez mais se divide entre os senhorios e os inquilinos de corda ao pescoço, entre outros ao deus-dará.

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    4 hrs and 23 mins
  • Pornografia, kidfluencing e iogurtes com pernas. Uma conversa com Maria João Faustino
    Apr 24 2025
    O que é decisivo transformar permanece quase sempre em segredo, leva o tempo necessário, não se apressa, mas, aos poucos, vai chegando à sua plenitude devastadora. Não leva tanto tempo como imaginam aqueles que preferem não pensar nisso, mas muitas vezes não chega a tempo de socorrer os que começam a sentir-se desesperados. Ainda assim há que aprender com essa espera, crescer com ela. Podemos ler sobre este movimento surdo no conto de duas cidades de Dickens, ouvir um diálogo entre esses que exijam que o tremor de terra cresça a ponto de engolir uma cidade. "Mas quanto tempo, o que é preciso para se que forme um terramoto desses?", pergunta um deles. "Muitas vezes, leva bastante tempo. Mas quando chega a altura, quando ele vem, não demora muito a engolir a cidade, e faz em pedaços tudo o que encontra à sua frente. Entretanto, está sempre a preparar-se, embora não se veja nem se ouça. Esta é a vossa consolação. Guarda-a." É uma esperança diabólica. Algumas mulheres foram-se agarrando a isto, e quando falavam entre si, depois de dispensadas as ilusões de ordem romântica, detestavam ver-se vestidas por outros, envolvidas na miserável farpela que lhes foi destinada. Preferiam bater-se pela sua autonomia, pelas suas reivindicações profundas, mesmo que as expressassem desajeitadamente. "Na nossa época, para um espírito agudo, o ridículo, 'ser ridicularizado', é qualquer coisa de sublime. Sublime e inquietante", diz-nos Françoise Sagan. A partir do momento em que se reconhece que tudo isso que eles consideram “natural” não passa de uma grande impostura, necessária para a manutenção de uma determinada ordem simbólica, só existe uma razão para cada homem ou mulher que aprenda a desenvolver a inteligência da sua sensibilidade. "E nesta posição desequilibrada, procurando a queda como quem procura um repouso, encontram-se muitos dos nossos contemporâneos", adianta a escritora francesa. "Ou por uma pata, e esqueçamos os loucos de amor, os que caem numa armadilha, os doentes graves e alguns poetas." O delírio tem mais a ver com fazer outra coisa da vida. Alguns só dão por si mesmos em intrigas mirabolantes, só por meio de alguma lenda acham uma forma de alívio face à linguagem e às instruções do inimigo, e dos seus constantes desafios para a luta, que podem fazer-nos alhearmo-nos das nossas próprias vidas, do caminho que deve ser traçado à parte. Mas então, como quem desenvolve interiormente um órgão capaz dos mais discretos milagres, a tristeza transforma-se em alegria, o luto em festa. Muitas vezes foi essa a trama de que se ocupavam as mulheres. Havia avisos contra isto e aquilo, prescrições para que levassem uma vida tão doméstica quanto possível, não exagerando os períodos de tempo entregues a actividades mais ambiciosas, intelectuais, sobretudo que houvesse o cuidado de não serem vistas com a caneta na mão, a redigir missivas demasiado extensas e sem um destinatário óbvio. "Pode-se saber tudo e, no fundo, recusar aceitar que que a aniquilação das mulheres é a fonte de sentido e de identidade dos homens. Pode-se saber tudo e ainda assim querer desesperadamente não saber nada, porque enfrentar o que sabemos é questionar se a vida vale alguma coisa", escreve Andrea Dworkin. Não podemos substituir-nos, mas podemos ler-nos em voz alta, descrever os ritmos, os tons, o enredo ao nosso redor. As diferentes formas de pornografia, o seu elemento comum... "Há uma mensagem básica e transversal a todos os tipos de pornografia, desde o esterco que nos atiram à cara, até à pornografia artística, o tipo de pornografia que os intelectuais classificam como erostismo, passando pela pornografia infantil de baixo calão, e as revistas de 'entretenimento' masculino. A única mensagem que é transmitida em toda a pornografia a toda a hora é esta: ela quer; ela quer ser espancada; ela quer ser forçada; ela quer ser violada; ela quer ser brutalizada; ela quer ser magoada, ela quer ser ferida. Esta é a premissa, o elemento principal, de toda a pornografia. Ela quer que lhe façam estas coisas desprezíveis. Ela gosta. Ela gosta. Ela gosta de ser atingida e gosta de ser magoada e gosta de ser forçada." Como dela não há nada publicado entre nós, vale bem a pena dar-lhe alguma folga nesta língua: "Os pornógrafos, modernos e antigos, visuais e literários, vulgares e aristocráticos, apresentam uma proposta consistente: o prazer erótico para os homens deriva da destruição selvagem das mulheres e baseia-se nela. Como o pomógrafo mais honrado do mundo, o Marquês de Sade (apelidado por alguns académicos de 'O Divino Marquês'), escreveu num dos seus momentos mais contidos e bem-comportados: 'Não haveria uma mulher na terra a quem eu desse alguma vez motivo para se queixar dos meus serviços tivesse eu a certeza de a poder matar depois.' A erotização do assassínio é a essência da pornografia, como é a essência da vida. O torturador ...
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    4 hrs and 26 mins
  • Déspotas, caudilhos e ditadores de bairro. Uma conversa com alguns fantasmas
    Apr 18 2025

    Já só se pode contar com os brutos para levar isto ou aquilo por diante, seja o que for, uma vez que, pelos seus próprios modos, estão familiarizados com o estrago, e não os tolhe a falta de um nexo óbvio, estão habituados a pegar por onde der, e ajudam-nos a partir do momento em que nos assumimos também como monstros folhetinescos, desses que dão corda a uma intriga qualquer, até porque se nos calamos logo mergulhamos num silêncio predador, assim, repetindo os mesmos tiques, tomamos balanço no que houver, mesmo em semanas como esta em que parece mais fácil apontar aqueles que nos falham, em que vamos de ausência em ausência, e, numa altura em que a terra já vai parecendo escassa para enterrar tantos, fica-nos a sensação de que, deste lado, a própria luz parece arquivada, uma "luz-mortalha", para nos servirmos de uma expressão de Rui Nunes, um dos poucos que continuam a dar com o isqueiro nalgum cano e a transmitir o seu morse exasperado que soa pelo edifício e por trás do solene e displicente papel de parede. Diante do desconchavo de tudo, em vez de milagres, suplicamos por desastres que tomem conta de tudo, engulam a vida, façam um pouco de justiça, dando cabo dos planos a quem tem a arrogância de fazê-los, e que são, na sua maioria, os safardanas responsáveis pelo estado das coisas. Mas voltando a um desses impulsos plagiados, desta vez a partir do Vargas Llosa, já ia sendo altura de um romance arrancar por estas bandas questionando-se em que momento preciso é que Portugal se fodeu de vez, e isto homenageando também o coronel que tantas vezes deu trela a essa indagação, e apontou algumas datas, algumas hipóteses bastante firmes, fazendo-nos espreitar as coisas por uma brecha, ver como se deu cabo de um período de suspensão, de quase irrealidade e sonho, que se viveu por aqui durante uns quantos meses, tendo sido talvez a última possibilidade antes de sermos engolidos pela vertigem. Alguém nos avisou: "Quando o tempo for apenas velocidade, instantaneidade e simultaneidade, e quando o temporal, entendido como esse acontecer histórico, houver desaparecido da existência de todos os povos, então, precisamente, as perguntas: para quê? para onde? e depois?, começarão a assombrar-nos como fantasmas"... E aí está, "esse motor de aceleração que comprime séculos em segundos", escreve Rui Nunes. “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, proclamava Valéry naquele célebre texto sobre a “crise do espírito” no final da Primeira Guerra, e agora o que nos diz o escritor português é que a ruína se tornou o próprio material de construção deste tempo, adiantando que a ruína exprime hoje a intimidade das civilizações. De resto, à volta, por toda a parte, ouve-se um zumbido e vêem-se as luzes dos monitores ligados, sente-se essa fetidez constante "do silencioso arquivo dos computadores, essa vala comum da modernidade". Por estes dias são as nossas próprias consciências que já arrastam e fazem alastrar esse mesmo sinal doentio, essa condenação que trazemos misturada no hálito. "Os noticiários tornam-se tão poderosos que já não precisam de televisão nem de jornais. Existem na percepção das pessoas. Elas próprias inventam as notícias, suficientemente poderosas para parecerem genuínas. São os noticiários sem os media", escreve DeLillo. Mas se não podemos sentir um verdadeiro ânimo, podemos ter vergonha de termos também caído nisto, e assim vimos pedir muitíssimas desculpas, e então damo-nos conta do motivo porque fazemos isto, porque insistimos em pôr uma frase à frente da outra, ultrapassando o desgosto, buscando o que vem depois, e desde logo também porque, como vincava Georges Perec nas últimas linhas de um dos seus livros… “Escrever: tratar de reter algo meticulosamente, de conseguir que algo sobreviva: arrancar umas migalhas precisas ao vazio que se escava continuamente, deixar nalgum lugar um sulco, um rastro, uma marca ou alguns sinais.” Aqui está o motivo por que quando não se tem mais nada ao menos podemos virar-nos para os nossos fantasmas, que não nos deixam falar sozinhos.

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    3 hrs and 36 mins

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